Hoje tenho uma mensagem muito importante para todos os voluntários e potenciais voluntários deste projecto, e permitam-me que o faça na primeira pessoa (o que raramente acontece), pois me vou reportar aos antecedentes deste projecto, quando, entre 1990 e 2005 me dediquei a trabalhos de recuperação ecológica e paisagística em terrenos próprios.
Para muitos de nós, e aqui creio incluir muitos dos voluntários que têm participado neste projecto, fazer um trabalho desta natureza não é apenas contribuir para recuperar a paisagem e a biodiversidade, é também uma forma de encontrar uma certa paz interior, procurando que a contemplação de uma paisagem degradada por vezes até ao limite, não contribua para gerar sentimentos de desespero, isolamento, vingança, ódio… Não que tais sentimentos não tivessem justificação (quase tudo tem justificação, afinal, até os maiores crimes) mas certamente que só poderiam ser destrutivos para o interior e inúteis para a paisagem. Claro que me estou a referir à “paisagem” não apenas num sentido superficial, nem apenas estético, mas à paisagem enquanto entidade viva, cuja dinâmica é herdeira de um passado que muitíssimo antecedeu o surgimento dos humanos, e que talvez nos sobreviva.
Mas, por mais que fazê-lo nos pareça necessário e mesmo vital, este é ainda um trabalho relativamente marginal para a sociedade que nos rodeia, suscitando em muitos dos seus membros reações da mesma natureza das que nós próprios teríamos se não canalizássemos conscientemente e por meio da nossa própria vontade as nossas energias para algo construtivo: desconsideração, desprezo, alheamento… Nos 26 anos que levo deste trabalho foram muitos os momentos em que constatei essas reações, e uma delas até teve um padrão bem repetitivo: não me consigo lembrar de uma única vez em que um eucaliptal da vizinhança dos meus trabalhos fosse cortado sem que uma ou várias das “minhas” árvores, laboriosamente cuidadas ao longo de anos, não fossem danificadas ou mesmo completamente destruídas pela queda de um eucalipto, ou mais do que um. Ontem mesmo tive que cortar pela base um carvalho que cuidei ao longo dos últimos 10 anos porque um madeireiro lhe deixou cair um eucalipto para cima. E nem se deu ao trabalho de lá retirar a ramada, levou só o que lhe interessou. E isto repetiu-se uma e outra vez ao longo destes 26 anos. Árvores grandes, pequenas, médias, todas foram tratadas com igual descuido por quem terá imensa dificuldade em compreender porque “o outro” faz assim, e mesmo que não compreenda, que é seu dever respeitar. Mas não foi apenas isto: foi depositado lixo, por vezes ostensivamente, foram ateados incêndios, passaram motas e bicicletas, abrindo trilhos fora dos caminhos, foram quebrados, roubados e vandalizados caixotes-ninho, foram abandonados animais domésticos mortos, madeira foi temporariamente depositada, causando danos sobre árvores próximas, ramada de eucalipto foi depositada, alguma dela tendo ficado abandonada, árvores plantadas foram arrancadas e mesmo levadas… tudo isto e ainda outras coisas aconteceram ao longo destes 26 anos. Há que ressalvar que também existiram acções e manifestações de apoio, e sobretudo de “não obstrução”. O que fiz (abstenho-me de referir o que senti, por reserva de intimidade)? Uma e outra vez cuidei das árvores danificadas e queimadas, removi o lixo, falei com madeireiros e promotores de provas de motas e bicicletas (os outros não porque não soube quem eram) reclamando dos seus actos. E houve uma consciência que fui amadurecendo e que considero inquestionável: que o meu e que agora é o nosso trabalho tem que vir acompanhado do mais escrupuloso respeito pelas opções dos demais, mesmo que elas sejam muito diferentes das nossas, mesmo que acreditemos que são impróprias, e mesmo que não sintamos uma consideração similar da sua parte pelo nosso próprio trabalho. Isto não decorre apenas de um código de ética mas da noção de que só assim poderemos esperar chegar ao coração e às mentes desses demais, assumindo, é claro, que temos nas nossas intenções, pensamentos e sentimentos algo que lhes falta e que lhes faz falta. É pelo que demonstramos e fazemos, mais do que pelo que dizemos, que lhes podemos chegar. Continuo a pensar assim mesmo depois de sérios revezes como aquele em que, mesmo “nas barbas” do meu próprio trabalho de 20 anos, um proprietário destruiu (literalmente) 50 metros de uma margem ribeirinha relativamente bem conservada. “Uma excepção, as coisas levam tempo, há que persistir e ter paciência”, diria a mim mesmo. E penso assim, quando, após a última árvore danificada por um eucalipto caído me abstenho de qualquer medida prévia no próximo eucaliptal vizinho a ser cortado, sempre esperando que da próxima vez vai correr bem, que da próxima a consciência estará mais acordada do que antes.
É uma tal postura que tenho de exigir a todos os voluntários deste projecto, num momento em que ela falhou, e daí todo este escrito. Na jornada de 12 de Março um ou mais voluntários, sem consultar ninguém, arrancaram uma meia dúzia de eucaliptos recentemente plantados num terreno vizinho e no lugar deles plantaram medronheiros. Pelo menos um marco estava bem visível e era óbvio que os eucaliptos tinham sido lá plantados pelo proprietário do terreno. Mas esses voluntários, talvez julgando-se “D. Quixotes” da floresta, acharam por bem arrancá-los, como se meia dúzia de eucaliptos a menos e meia dúzia de medronheiros a mais fizesse a diferença. Ou como se achassem que davam uma lição ao proprietário do terreno vizinho. Não sei quem foi nem necessito saber. Mas que quem foi ou quem esteja na disposição de fazer algo parecido guarde para si a lição: para participar como voluntário neste projecto tem que partilhar esse respeito absoluto de que falava acima para com as opções dos que não pensam nem fazem como nós.


E agora voltemos ao trabalho, que a Primavera já começou.
Paulo Domingues
Caro Paulo,
É com imensa pena que ainda não fui ainda a nenhuma destas ações. O regresso ao Sul (Montemor-o-Novo) o tem impedido, entre outras coisas que me levam a uma falta de tempo crónica sempre que me desloco aí acima.
Mas é também por causa de posts como estes, e da seriedade que os mesmos representam, que todo este trabalho é de louvar.
” Não faças ao outro o que não gostas que façam a ti mesmo”, lá diz o ditado e muito bem, porque só assim se estabelecem e fazem crescer relações de confiança, tão ou mais importantes que quaisquer outras para objetivos de conservação!
Grande abraço. Espero um dia destes aparecer.
Luis Jordão
Olá Paulo.
Foi com muita apreensão que comecei a ler o post, e já estava a imaginar que possíveis “desastres” teriam ocorrido e que muito do trabalho feito teria sido destruído.
Felizmente não aconteceu nada de grave, mas justifica o teu post.
Mesmo que possa reconhecer na atitude dos tais voluntários a vontade genuína de, com tais actos, contribuir para o projecto, não é, nem poder ser essa a via.
Acho muito importante que tais atitudes não se repitam, pois, para lá das questões éticas, podem descredibilizar o PCS e por em causa os seus objectivos.
O que aconteceu foi um pequeno golpe terrorista ambiental. Mas como todos os actos terroristas, apenas causou destruição e possíveis inimizades.