Tentemos criar uma imagem do que seria a paisagem desta região nas últimas fases da economia de subsistência, e como ela evoluiu até aos dias de hoje.
A tradicional economia de subsistência sobreviveu praticamente sem alterações de fundo até às primeiras décadas do sec. XX, prolongando-se mais no interior montanhoso do que nas áreas mais próximas do litoral. Em Belazaima, pode-se dizer que o processo de alteração se iniciou em finais da década de 40, com a construção de uma estrada (a EN 336, entre Bolfiar e o Luso) e se acelerou na década de 60, com a chegada da electricidade. Deste modo, em 2020 ainda estão vivas pessoas que tiveram a sua juventude em plena economia de subsistência, e que deste modo testemunharam ao longo das suas vidas o mais rápido e significativo processo de alteração de modo de vida e de transformação da paisagem de toda a História.
Contudo, data ainda do final do sec. XIX um outro acontecimento que viria a ter importância na paisagem que presenciamos hoje: as grandes extensões não cultivadas das montanhas, que até aí tinham tido apenas um aproveitamento comunal – pastagens extensivas e aproveitamento de matos para as camas dos animais – foram privatizadas pelo Estado e distribuídas pelos habitantes locais, que deste modo passaram a pagar impostos pela sua posse. Embora fossem quantias pequenas, tinham importância para comunidades de subsistência onde o dinheiro era um bem raro, e por outro lado a contribuição dessas áreas era marginal para a economia familiar e comunitária. Foi nesse contexto que foi criada a que é hoje a maior propriedade da freguesia, com mais de 500 ha, a mata do Cabeço Santo, da Altri Florestal.
Decorria o sec. XX, ainda em plena economia de subsistência, quando apareceu um estranho vindo dos lados do Caramulo e com dinheiro proveniente da exploração dos sanatórios que aí existiam e que eram procurados no tempo em que a tuberculose era uma doença com expressão (hoje estão em ruinas), e que não teve muita dificuldade em convencer os aldeões das (agora abandonadas) aldeias de Belazaima-a-Velha e dos Cepos a vender, por preços muito baixos, grandes extensões dessas propriedades de montanha que poucas décadas antes lhes tinham sido entregues. Diz-se até que o estranho nem teve de comprar todos esses hectares que a propriedade hoje tem, bastou-lhe comprar a periferia e “absorveu” o restante! Assim foi “desenhada” a Mata do Cabeço Santo” também conhecida localmente por “Mata do Lacerda” em referência ao nome do tal “estranho”, que ao que parece nunca cá viveu.
No entanto o estranho pôs mãos à obra: abriu caminhos, alguns empedrados e mesmo asfaltados, construiu duas casas para instalar um guarda-florestal à entrada da mata, a 700 m do Feridouro, e construiu uma grande casa quase na cabeceira do que chamamos hoje o vale nº 7, para alojar trabalhadores, casa essa com dois grandes dormitórios, uma grande cozinha, casas de banho, aproveitamento de água de uma nascente e ainda outros recursos: é a Casa de Santa Margarida, agora quase em ruinas. E para que foram tantos trabalhadores? Para além de abrirem os caminhos, o que então tinha de ser feito à mão, plantaram eucaliptos na propriedade, o que em breve haveria de multiplicar o seu valor!
Assim constatamos um evento que só ocorre num momento de grande convulsão da História, um momento em que um “mundo” desaparece para dar lugar a outro, um momento em que grandes oportunidades se criam ou se desbaratam. Hoje olhamos para a Mata do Cabeço Santo e é difícil não imaginar o que ela poderia ser se o tal estranho, o Dr. Lacerda, tivesse sido um verdadeiro visionário, movido por ideais elevados, apoiados em abundantes recursos. Foi, contudo, apenas um homem do seu tempo, e de visionário teve apenas a capacidade para antever o quão lucrativo seria o negócio do eucalipto. Num segundo momento arrendou a propriedade à empresa Celbi, detida então pela multinacional sueca Stora Enso, para depois finalmente a vender. Do Dr. Lacerda ficaram apenas os marcos na propriedade, e a memória na população local, ainda um pouco agastada pela facilidade com que um estranho tomou posse de mais de um terço da área da antiga freguesia.
Mas esta foi apenas uma “história paralela”, uma curiosidade para o Projecto Cabeço Santo, que por si só não permite compreender a evolução da paisagem local ao longo do sec. XX.
Ainda que marcada pelo referido acontecimento (privatização das terras de montanha de anterior uso comunal) a vida das populações locais não se alterou muito ao longo das primeiras décadas do sec. XX, digamos, até ao fim da Segunda Guerra Mundial. A quase totalidade da população praticava uma agricultura familiar de subsistência, na qual os bois, ou a vaca, desempenhava papel central. Nas terras de regadio, a maior parte delas dependente do caudal do ribeiro, represado por obras mais ou menos precárias, cultivava-se o milho. As terras de sequeiro eram dedicadas às batatas, ao trigo, e sobretudo à vinha. Criavam-se animais, sobretudo porcos, galinhas, ovelhas e coelhos. Aproveitava-se a lã das ovelhas e cultivava-se o linho. As árvores com mais expressão na paisagem cultivada eram as oliveiras, embora só nas bordaduras das terras. Entre as árvores de fruto havia sobretudo macieiras e figueiras, das quais ainda restam alguns exemplares antigos, embora de variedades sem demasiado interesse para além do histórico, salvo excepções.
As batatas, os animais e o vinho eram os principais excedentes “exportados” e fonte de rendimento, embora apenas de forma ocasional. Existiam oficinas de ferreiro, costureiras e construtores. Embora o substrato rochoso dominante na zona seja o xisto, este não era de muita qualidade para construção, como acontecia noutras zonas “do xisto”, pelo que as construções eram sobretudo de pedras soltas variadas, laboriosamente empilhadas para formar as paredes exteriores. Também destas pedras são a maior parte dos muros de suporte de terras que foram construídos ao longo dos séculos para atenuar os declives e melhorar o aproveitamento das terras.
A primeira estrada asfaltada só chegou a Belazaima-do-Chão na década de 40, a electricidade em 1963 (a Belazaima-a-Velha e aos Cepos já só chegaria depois do fim do Estado Novo, o asfalto nunca lá chegaria).
A pastorícia extensiva, que teria sido o principal aproveitamento das encostas declivosas, onde só muito pontualmente se criaram socalcos agrícolas, estava já em declínio nas primeiras décadas do sec. XX. A verdade é que nessas encostas as árvores eram escassas, estando cobertas essencialmente com matagal. No alto do Cabeço do Meio (do outro lado do ribeiro, em relação ao Cabeço Santo) destacavam-se 3 laranjeiras. Não longe das terras agrícolas existiam alguns carvalhos e sobreiros de grande porte, a maior parte dos quais foram cortados com a chegada dos eucaliptos (o “sobreiro gigante” do Tojal, hoje classificado, é um sobrevivente desse processo). Existiam pequenos pinhais, de iniciativa particular, mas que não chegavam para moldar o carácter da paisagem.