Uma combinação de factores, quase todos no mesmo sentido, deram origem aos tristes eventos que se iniciaram no dia 28 de Abril ao início da madrugada: um mês de Abril sem chuva, e com vários episódios de temperaturas muito elevadas, acompanhados de vento de leste seco e por vezes forte, com predominância noctura; duas noites consecutivas de vento de nordeste forte, a de 27 e a de 28; uma paisagem vulnerável, uniformizada até ao limite; a vontade de causar dano, materializada no atear do fogo, pouco depois da meia noite de 28 de Abril, um momento seleccionado para que o dano fosse o maior possível, e as hipóteses de reacção o mais demoradas e difíceis possível. Apenas um factor em sentido contrário: as temperaturas eram baixas, a mínima dessa noite terá estado entre 6 e 8 ºC, o que pode ter evitado danos maiores em muitas das árvores atingidas, mesmo eucaliptos, mas que não foi suficiente para evitar que as consequências deste incêndio fossem grandes.
Com grande probabilidade, o fogo foi ateado no coração do Vale de Barrocas, ou na sua proximidade, e terá sido a área onde este ano foram plantadas mais de 1500 árvores pelos voluntários do Projecto Cabeço Santo, uma das primeiras a ser atingida. Sabíamos que o local era vulnerável. Os eucaliptos previamente existentes tinham sido cortados e muita ramada tinha ficado espalhada pelo chão. As próprias plantas do matagal, amassadas pela queda das árvores, estavam parcialmente secas. Num momento, terá chegado a aflorar a ideia de reduzir toda essa massa combustível por meio de um fogo controlado antes da plantação, como aliás já outras vezes se tinha feito no Cabeço Santo. Mas a emergência espontânea de muitas plantas com valor para a regeneração, mais algumas, essencialmente carvalhos, que tinham conseguido escapar à queda dos eucaliptos, fez afastar essa ideia e os trabalhos avançaram sem ela.
Tão rápido terá sido o fogo a subir o Cabeço do Meio, que, quando os alarmes soaram, pela 1 da madrugada, já as chamas eram visíveis em Belazaima, no alto do cabeço. Ajudadas pelo vento que soprou forte durante toda a noite, o fogo desceu a encosta em direcção a Belazaima e às Póvoas, enquanto se espalhava também por toda a encosta a sul do ribeiro, desde a represa de Belazaima até à Ribeira do Tojo, já perto de Belazaima-a-Velha, passando pelo Feridouro. Com o nascer do sol, o vento acalmou, e os meios de combate intensificaram-se, por terra e pelo ar, mas as chamas já estavam muito dispersas, e só ao fim da tarde desse dia o incêndio foi extinto. Mas ainda durante a tarde esteve ameaçada a área da Benfeita, já junto a Belazaima, onde as primeiras plantações da época tinham sido realizadas. Chegaram a perder-se aqui algumas árvores, mas conseguiu evitar-se o pior.

O balanço deste acontecimento começou a fazer-se no próprio dia, com uma visita aos locais atingidos. Para os trabalhos do Projecto, a principal perda foram os cerca de 4 ha do Vale de Barrocas onde este ano se tinham realizado plantações. Há uma certa probabilidade de algumas das plantas rebentarem e recuperarem a parte aérea, mas para confirmar isso é preciso esperar. Arderam também os 7,5 ha da propriedade das Costas do Rio, logo ao lado, ainda com eucaliptos, que iriam ser cortados este ano para que esta área com 1 km de margens do ribeiro pudesse, pelo menos parcialmente, ser adicionada à área de intervenção do projecto. Mais para montante, o incêndio atingiu o corredor ribeirinho da Ribeira do Tojo, e aqui, justiça lhe seja feita, cumpriu uma das suas funções, não obstante os poucos anos que ainda tem: o fogo ainda o atingiu ao longo do caminho mas nem num metro conseguiu atravessar o ribeiro, não obstante a presença dos fetos secos do ano anterior, que noutros locais foram “pasto” suficiente para as chamas avançarem. Já mais para jusante, no eucaliptal das Costas do Rio, o fogo atravessou o ribeiro e ainda queimou várias centenas de metros do corredor ribeirinho na Mata da Altri Florestal, incluindo parte da área de confluência dos vales nºs 3, 4 e 5, mas os responsáveis da empresa, aliás logo presentes no local com os seus meios, puderam respirar de alívio: foram poucos os eucaliptos ardidos.








Do lado norte do ribeiro ardeu ainda uma pequena faixa do corredor ribeirinho a jusante dos portões da mata, que tínhamos plantado no ano passado, mas sem grandes perdas. O fogo atravessou a estreita faixa de carvalhos aqui existente, sem praticamente lhes causar dano, para depois progredir pela encosta, já com mais material combustível.


Da “minha” Quinta das Tílias (e desculpem falar dela aqui, que não faz propriamente parte do projecto) arderam os 8 ha da área florestal de proximidade da Quinta, onde desde 2006 fazia trabalhos de reconversão. Destes, talvez menos de metade era carvalhal. O fogo progrediu através dos fetos secos e a maior parte das árvores perdeu todas as folhas, mas a expectativa de recuperação das partes aéreas é grande. O tempo o dirá.



Para concluir a ronda, constatámos que 4 das 6 colmeias que faziam parte do apiário do Cabeço Santo tinham sido roubadas. Não queimadas mas roubadas. Ficou apenas uma Lusitana e a Top Bar, que podia ser facilmente identificada noutro local. Animador não é?
Que lições retirar deste evento?
Em relação ao trabalho no terreno, talvez a mais importante seja a de que temos de colocar mais atenção na redução do material combustível, o que no caso do Vale de Barrocas só teria sido possível de forma efectiva com a realização de uma queimada controlada previamente à plantação. Mesmo os fetos secos, que ocorrem todos os anos no final do Outono (onde crescem), deveriam ser triturados com moto-roçadora, pelo menos parcialmente, pois foram o principal factor de dano para os carvalhos. Nos limites exteriores das áreas de intervenção deveriam criar-se corredores onde o controle de materiais combustíveis fosse mais estrito. Claro, tudo isto tem custos de mão de obra elevados. Adicionada a esta redução da vulnerabilidade, seria importante ter mais duas coisas: capacidade para fazer vigilância nocturna, pelo menos nas noites mais susceptíveis, que, em condições normais, não são assim tantas por ano, e capacidade para, detectada uma ameaça, dirigir uma intervenção rápida sobre os acendimentos. Talvez no futuro tenhamos condições para o fazer.
Este é, naturalmente, um momento em que, de forma particularmente intensa, percebemos a enormidade da tarefa que temos em mãos, confrontada com uma indiferença, que pode chegar à hostilidade, de idêntica dimensão. Não podemos dizer com segurança que este acto teve deliberadamente o objectivo de atingir o projecto e os seus objectivos, mas há alguns indícios que apontam nesse sentido, pois contabilizo, com este, cinco incidentes do género nos últimos anos, quatro dos quais resultaram em fogo ateado em áreas de recuperação ecológica, embora a extensão dos danos tenha sido consideravelmente menor do que agora. É verdade que também houve acendimentos noutros locais, e não pretendo levantar nem viver à sombra do fantasma do “eterno inimigo”, que afinal não será mais do que “doente”, numa sociedade e num tempo tão propensos a alimentar os mais doentios desvios.
Essa sensação, da enorme discrepância entre o que é necessário fazer e o que há condições, materiais e humanas, para fazer, parece ser de facto uma característica da nossa época. Ainda há dias lia no El País, segundo Zygmunt Bauman: “Há uma crescente brecha aberta entre o que é necessário fazer e o que se pode fazer, o que importa realmente e o que conta para quem tem o poder de fazer, entre o que acontece e o que seria desejável acontecer” (http://cultura.elpais.com/cultura/2017/04/17/actualidad/1492423945_605390.html). Fico confortado com o encontro de entendimentos, mas o que fazer com ele? O que fazer com a ideia de se poder trabalhar 10, 20 anos, quiçá uma vida inteira com um objectivo, tão grande que se consegue realizar apenas numa ínfima parte, e que no final desses 10, 20 anos, quiçá no final dessa vida inteira, essa ínfima parte possa ser alvo de um destrutivo acto anónimo que demora um segundo a ser desencadeado? Não posso responder a esta questão, embora acredite que ela só tem uma resposta pela positiva procurando olhar para o “problema” de uma perspectiva mais larga do que aquela que nos é imediatamente acessível, através dos sentidos, do conhecimento técnico, da informação. Uma perspectiva de onde se colha energia, ânimo e determinação, mesmo quando os factos parecem convidar ao desânimo, ao esgotamento e à desistência. E existe uma tal perspectiva? É um grande desafio encontrá-la mas necessitamos dela desesperadamente. Mesmo que não a tenhamos muito clara, não podemos esperar pela claridade plena para tentarmos desenterrar essas energias que a acção requer. Por isso, sim: apesar de todas as contrariedades, de as invasoras serem um desafio gigante para as nossas capacidades, de os solos estarem desprovidos e fragilizados, de as alterações climáticas poderem alterar as “regras do jogo a meio”, de todas as dificuldades da natureza humana, apesar de tudo isso e ainda mais, voltaremos ao Cabeço Santo, ao negro Vale de Barrocas, com as mesmas ilusões da primeira vez, mas… com a vantagem de agora termos mais experiência. Faremos a visita prevista para dia 20 de Maio, procurando colocar as coisas belas e as feias nos lugares certos do nosso entendimento, e faremos o CTC que tínhamos previsto para este fim de semana numa outra data que consigamos encontrar. (O CTC não foi contudo cancelado por causa do fogo, mas por causa da chuva, que, atrasada, acabou por vir este Domingo de madrugada). Antes de tudo isso, estaremos na Expo-florestal, em Albergaria.
E vós, voluntários, que tão dedicadamente contribuíram para o trabalho deste ano, agora parcialmente destruído, como se sentem? Com que vontade para voltar? Expressem-se, se quiserem, nesta página, mas sem raiva nem ressentimento, que isso leva muitas energias e precisamos delas para tudo o resto! Até breve!
Paulo Domingues
Admiro a vossa coragem, determinação e esperança em pretender prosseguir, a não baixar os braços, em retirar mensagens positivas e pistas para avançar.
No que estiver ao meu alcance, continuarei a dar o meu singelo contributo.
Não sou voluntário, não por falta de solidariedade do vosso trabalho (sigo com muito interesse os newsletters) mas por falta de disponibilidade.
Em todo o caso é triste o que aconteceu, e fica uma sensação de perda.
Sou, assim, solidário concosco.
Concordo que existe o risco de acontecimentos como este se repitam em áreas de recuperação (ainda mais se houver crime ou pura maldade).
Sem retirar qualquer mérito à vossa iniciativa, estou em crer que uma das formas de aumentar os espaços com espécies autoctones, junto das plantações extensivas de eucalipto, deveria passar, na minha óptica, pela obrigatoriedade de plantação de uma quota de folhosas (digamos 10 ou 20%) da área de eucalipto
E isto devia ser uma obrigatoriedade legal.
Teria a vantagem de criar descontinuidades na plantação, mantinha as espécies autoctones dispersas no território para futura reconversão, melhorava a paisagem, criava espaços para ávida selvagem, etc etc.
Tenho seguido o vosso trabalho, com admiração e desejo de participar, apesar de não ter ainda conseguido. Fiquei agora com mais vontade, não se pode cruzar os braços. Nesse campo o desânimo não pode criar raiz.
Paulo,
Apesar da intensidade do fogo ter sido provavelmente grande (está bastante calcinado e com poucos indícios de vegetação menos afectada) é muito cedo para saber o que foi de facto afectado e o que simplesmente foi retardado na sua evolução.
De todo o texto penso que só discordo num ponto relevante e tenho dúvidas sobre uma ideia.
Tenho dúvidas na ideia de que o é possível fazer é demasiado pequeno para o que é preciso. Isso só é verdade se se quiser evitar o fogo, o que me conduz à minha divergência relevante:
tal como no judo, é preciso contar com a força da natureza, de que o fogo faz parte, e programar, planear e executar partindo do princípio de que o fogo é uma inevitabilidade com a qual temos de aprender a conviver melhor.
henrique pereira dos santos
Olá Paulo e Jorge,
Fui pela primeira vez este ano ajudar no projecto e logo para o Vale das Barrocas onde tudo acabou agora por arder. A minha família tem vários terrenos na zona de Seia, todos eles objecto de plantações em anos recentes e alguns deles já entretanto devastados pelo fogo. Há algum desânimo depois de um episódio como este, mas acho que isto só faz ter mais certezas sobre a necessidade do trabalho que se tem vindo a realizar até aqui. Talvez com algumas alterações para futuro, mas sem dúvida que o plano de base está correcto.
Tendo a certeza que saberão mais sobre o assunto do que eu, deixo algumas sugestões para um melhor combate ao fogo no futuro:
– criação de faixas de gestão de combustível cada vez mais largas devidos aos efeitos climatéricos extremos das alterações climáticas (possivelmente terrenos inteiros com áreas de vários hectares terão de ser dedicados exclusivamente à contenção de incêndios, possivelmente com pastagens para cabras/ovelhas ou para a prática agrícola)
– aposta nas linhas de água tal como ficou provado mais uma vez na análise à área ardida deste fogo (por exemplo, se calhar em vez de plantar a totalidade do Vale das Barrocas talvez tivesse sido melhor realizar aí fogo controlado, preservando a zona mais húmida e começando a regeneração natural autóctone a partir daí, aumentado progressivamente a área plantada ao longo dos anos)
– pedido de colaboração externa na questão da prevenção dos fogos florestais (a Montis e o Laboratório de Fogos Florestais da UTAD penso que poderão ser parceiros úteis) pois terão uma visão independente sobre a área de gestão do projecto e estarão menos ligados emocionalmente (sei que por vezes é difícil decidir queimar uma determinada área quando há ali carvalhos a rebentar e que nem sequer foram preciso plantar)
Boa sorte para o futuro. Vou com certeza voltar em breve para ajudar.
Abraço,
João
Paulo, olá! Estou desolada com as imagens, muito força é o que desejo aqui da Ásia; em Dezembro irei ver-vos. No entanto, observo nas imagens árvores já bem crescidas, sinal de esperança e resiliência, que bom!
oh queridos amigos Jorge e Paulo!!
sem palavras… só uma, contem comigo!
em tudo o que vos possa apoiar, aqui estou, aqui estarei.
abraço de luz e beijinhos no coração avani
Nem raiva nem ressentimento, Paulo?
Sei que o desejo de vingança de nada serve e nada resolveria, mas não consigo deixar de imaginar o que faria ao anormal que ateou o fogo (e são coisas nada bonitas).
Sempre senti o receio de isto vir acontecer. Por muito cuidado e trabalho que se tenha, as áreas do projecto não deixam de estar cercadas por um “monstro” que aliado ao fogo se torna indomável, ajudando a destruir tudo à sua volta.
Agora, como dizes, há que continuar em frente. Será a melhor maneira de mostrar que o fogo e o comportamento das pessoas que o levam até ao Cabeço Santo, podem destruir a vegetação, mas não a ideia nem a vontade de fazer diferente e melhor.
Sendo que o controlo dos factores meteorológicos está fora do nosso alcance e o do comportamento das pessoas também (porque, por mais sensibilização ou tomada de consciência das pessoas, haverá sempre alguém que pensará de forma diferente, não esquecendo que a ganância e maldade faz parte da natureza humana), considero que no trabalho de ora em diante haverá que, também se tenha em vista o objectivo de minimizar o risco de propagação do fogo às áreas intervencionadas.
Bom, que isto sirva como ponto de paragem para reflexão e delineamento de novas estratégias.
Até um destes dias.
Abel Barreto
Olá Paulo e tod@s.
Devo confessar que fiquei bastante triste quando soube que o incêndio era em Belazaima (como vivo um bocado desligado das notícias, não estava a par). Depois de falar com o Jorge, fiquei um pouco mais sossegado mas isso não apaga o sentimento de revolta e frustração perante estes fogos alegadamente de mão criminosa. Sei que não sou ninguém para julgar os outros mas o meu lado mais duro e impiedoso clama por justiça e castigo pesado para estas pessoas, doentes ou não. Não vejo como resolver este problema dos incendiários senão com pena máxima e trabalhos forçados. Não compreendo a impassividade dos Governos em relação a isto. Estou a ser demasiado duro? Estou a pensar em mal? Pontos de vista diferentes aceitam-se.
Apesar de tudo, e após ler o teu texto/desabafo, fico com um pouco mais de alento, não só por saber que o Projeto não foi demasiado afetado, mas também pela leitura dos teus próprios sentimentos, aprendizagens, propostas de melhoramento, a tua própria busca de alento no meio de toda a raiva e frustração que poderás também estar a sentir e com razão. Sinto muito orgulho por participar neste projeto e por fazer parte deste grupo de pessoas. Isso também importa muito para mim.
Como tal, dentro da minha disponibilidade, estou a postos para ajudar. Até mesmo nessas vigilâncias noturnas. Basta conversarmos.
Obrigado e até já.
E pronto, mais uma excelente reportagem, apesar de ser um texto sobre algo que não tem nada de bom, algo que foi planeado de forma calculista e com interesses mesquinhos e próprios de gente invejosa e estúpida.
Agora que o Vale de Barrocas está limpo da rebentação de eucaliptos (imagino que o fogo tenha ajudado a acabar com a rebentação mais teimosa), vamos lá ver se a chuva vai ajudar a que alguns dos medronheiros por nós plantados, bem como os carvalhos e sobreiros que lá ainda sobreviveram à eucaliptização e corte dos eucaliptos, deitem folhas novas e depois sobrevivam a um Verão sempre castigador.
Agora vamos é ver se dia 20 de Maio temos uma enchente no Dia da Visita ao Cabeço Santo, para caminharmos pelo percurso pedestre e vermos este grande Projecto que decerto tem muitas coisas boas para mostrar, e animar-nos para persistir nas plantações e combate às invasoras.
E termino com um abraço de ânimo a todos os voluntários, mas em especial ao Paulo Domingues e ao Jorge Morais. Com a certeza de que este ano, no Verão, vamos estar mais tranquilos em relação aos fogos florestais que decerto vão ocorrer. E agrada-me a ideia da vigilância nocturna nas noites mais perigosas, até porque nos meios pequenos é fácil fazer passar a ideia de que andamos sempre lá a vigiar, não só em certas noites. E se apanharmos algum anormal, basta prendê-lo e chamar o Abel… que nestes comentários mostrou vontade em ter uma conversa pedagógica com ele.
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