Hoje vou abrir uma excepção importante na história deste blogue: vou escrever na primeira pessoa. Se acharem uma iniciativa inapropriada, por favor digam-no. Nunca censurei um comentário.
Eu tenho uma filha de 7 anos. Com frequência lemos para ela uma história antes de adormecer. Uma história muitas vezes repetida. Uma dessas histórias é a que transcrevo a seguir:
“A galinhita encarnada e o grão de trigo
Certo dia em que a galinhita encarnada esgravatava na eira da quinta, esgravatando, esgravatando, encontrou um grão de trigo.
– Quem semeará este grão de trigo? – perguntou.
– Eu não – disse o pato.
– Eu não – disse o gato.
– Eu não – disse o cão.
– Muito bem, pois vou eu semeá-lo – disse a galinhita.
E então semeou-o.
Ao fim de algum tempo, o trigo cresceu e amadureceu.
– Quem ceifará o trigo? – perguntou a galinhita encarnada.
– Eu não – disse o pato.
– Eu não – disse o gato.
– Eu não – disse o cão.
– Muito bem, pois vou eu ceifá-lo – disse a galinhita.
E ceifou-o sozinha.
– E agora, quem malhará o trigo?
– Eu não – disse o pato.
– Eu não – disse o gato.
– Eu não – disse o cão.
– Muito bem, pois vou eu malhá-lo.
Depois de o ter malhado, a galinhita perguntou:
– Quem levará o trigo ao moinho para ser moído?
– Eu não – disse o pato.
– Eu não – disso o gato.
– Eu não – disse o cão.
– Muito bem, pois vou eu levá-lo.
A galinhita encarnada carregou o trigo e levou-o ao moinho. Uma vez transformado em farinha, perguntou:
– Quem fará pão com esta farinha?
– Eu não – disse o pato.
– Eu não – disse o gato.
– Eu não – disse o cão.
– Muito bem, vou eu amassá-lo – disse a galinhita encarnada.
E com a farinha fez uma formosa merendeira de pão. Depois de a ter concluído, perguntou:
– E agora, quem comerá este pão?
– Eu, eu! – disse o pato.
– Eu, eu! – disse o gato.
– Eu, eu! – disse o cão.
– Pois nenhum de vós irá comê-lo – respondeu a galinhita! Eu própria o farei.
E, chamando os seus franguitos, partilhou o pão com eles.”
Alguns saberão que as “raízes” do Projecto Cabeço Santo estão no trabalho, a princípio muito incipiente, que desenvolvi nuns terrenos de família junto a Belazaima desde 1990. Faz portanto agora 20 anos. A inspiração para esse trabalho devo-a largamente à Quercus, à qual tinha aderido alguns anos antes (então ainda Grupo para a Recuperação da Floresta e da Fauna Autóctones). O trabalho, iniciado nuns eucaliptais degradados, com silvados enormes e alguns carvalhos danificados nas extremas das parcelas, não foi fácil. Logo para começar porque, naquela zona, as parcelas eram de muito pequena dimensão, exigindo um trabalho de emparcelamento que se prolongou por todos estes anos e que, aliás, ainda não está concluído, tendo envolvido até agora mais de 30 parcelas de 25 proprietários nos três núcleos de trabalho existentes: Valinho Turdo, Pedreira e Ponte Nova. Foi um trabalho com muitos sucessos e fracassos. Permitam-me que descreva um exemplo de cada.
Um dos mais dolorosos fracassos: existia na área da Pedreira um enorme carvalho centenário, com uma copa majestosa, o maior e mais belo que conhecia em toda a freguesia de Belazaima, vizinhas e mais além. Situava-se perto do Ribeiro, numa área que não indiciava actividades de usufruto privado, pelo que sempre assumi que não pertencia a ninguém. Um dia, no Inverno de 1992, soube de repente que tinha sido vendido a um madeireiro por um proprietário local. Fui de imediato falar com ele. Confirmou que de facto estava numa parcela que lhe pertencia, mas, perante os argumentos que lhe apresentei, concordou em devolver o dinheiro que já tinha recebido do madeireiro, e poupar a árvore. Fui logo a seguir falar com o madeireiro que, embora dando mostras de pouca vontade, me prometeu que não a cortava. No dia seguinte, que era Segunda-feira, vim para Aveiro e procurei de imediato saber junto da então DGF o que, legalmente, era possível fazer para proteger a árvore. Mas já era tarde: traiçoeiramente, o madeireiro tinha ido lá logo na madrugada desse dia e tinha-a cortado. Foi numa fria madrugada de neblina que lá voltei e a senti ainda mais fria perante esse espaço vazio e o triste cenário de toda a ramada depositada sobre o leito do rio. Contei os anéis do enorme cepo: 137, pelo menos. Foi sobre os destroços dessa amarga derrota que prometi a mim mesmo trabalhar sem hesitação para que naquele espaço se desenvolvesse o mais belo carvalhal que Belazaima havia visto, não com uma mas com muitas árvores centenárias. Por isso, o trabalho continuou a partir daí com ainda maior determinação, embora, claro, ainda faltem 60 ou 70 anos para que seja possível voltar a ver árvores centenárias naquele espaço… O madeireiro? Não voltei a vê-lo. Pouco tempo depois disseram-me que tinha emigrado, e nunca mais voltou. Talvez não tenha merecido a terra que pisou…
Agora um importante sucesso: em 2003, trabalhava no núcleo da Ponte Nova quando verifiquei que, um pouco a jusante, numa das áreas mais declivosas existentes naquela zona, um eucaliptal tinha sido cortado. Mas de facto não era apenas um eucaliptal: devido ao declive do terreno, os eucaliptos eram raros, e lá pelo meio havia muitos carvalhos e outra vegetação autóctone. Infelizmente muitas árvores tinham sido danificadas pela queda dos eucaliptos, mas estavam lá. Também havia mimosas em sítios difíceis e o silvado tornava o espaço impenetrável junto ao rio. Procurei saber quem era o proprietário e o que pretendia fazer dali. Não era de Belazaima mas consegui contactá-lo. Pretendia armar o terreno em socalcos e replantar com eucaliptos. Usei todos os argumentos de que dispus para que não o fizesse, tendo ele finalmente concordado em fazer apenas dois socalcos na extremidade mais afastada do rio e deixar-me recuperar a restante área para efeitos de conservação. A montante, e até ao núcleo onde já vinha a desenvolver trabalho, havia mais três parcelas pequenas e dois terrenos grandes, um deles muito invadido com mimosas. Dos três pequenos, dois deles os respectivos proprietários cederam-nos sem contrapartidas, outro comprei-o. Quanto aos terrenos grandes, um dos proprietários cedeu a parte ribeirinha por troca e o outro dexou lá trabalhar com algumas contrapartidas. Foram importantes sucessos: uns 100 metros de uma larga faixa de margem, e, numa extensão, em ambas as margens, num dos mais belos troços do ribeiro, poderia ser recuperada. Mas claro, agora ainda era necessário realizar o trabalho, o mais difícil a que me tinha proposto até então. Com alguns colaboradores pagos mas muito empenhados foi-se realizando entre 2003 e 2005, quando um evento inesperado desviou as minhas atenções para uma área muito mais a montante… o Cabeço Santo.
Nos últimos 4 anos não fiz muito trabalho nestes 3 núcleos de carvalhal, que entretanto se foi transformando num belo espaço verde, mesmo para quem foi olhando com indiferença para todo o trabalho lá desenvolvido ao longo dos últimos 20 anos. Vou lá muitas vezes, mas a maior parte delas são agora para colher energia e inspiração. Foi por isso que, com a Primavera a despontar, lá voltei no dia de Páscoa de 2010. Então tive um choque: o espaço tinha sido alvo de uma agressão. Ao longo dos dois núcleos ribeirinhos havia uns plásticos vermelhos pendurados nas árvores e o terreno apresentava-se ferido pela passagem de um número indeterminado de motas. Tinham entrado pelo núcleo ribeirinho da Pedreira, atravessaram-no a corta-mato deixando em alguns locais sulcos profundos no terreno, e um pouco a jusante atravessaram o rio, ainda fora de qualquer caminho, tendo entrado no núcleo da Ponte Nova, atravessado dois vales com água corrente, um deles onde cresce uma mancha com várias espécies de fetos, e abandonado o terreno noutra extremidade. A minha indignação nem me deixou apreciar o espaço nesse dia. Arranquei de imediato quantos plásticos pude e procurei desde logo saber quem tinha sido. Não foi preciso fazer mais de três telefonemas. Tinha-se tratado de um passeio de motas com fins de “beneficência”, e os responsáveis pelo evento, argumentando que tinham “descoberto” aquele sítio espectacular, pensaram que nem tinha “dono” (não devem ter reparado nos caixotes ninho, nos montes de ramada dos desbastes, só para referir os mais evidentes). Desculparam-se. Retiraram os plásticos ainda existentes. Deixei até cair a minha intenção de exigir desculpas por escrito com o compromisso expresso de que tal nunca mais se repetisse.
Ainda este caso não estava resolvido outro se preparava já. Noutro local do núcleo da Ponte Nova descobri que alguém tinha realizado uma remoção total da vegetação herbácea numa faixa que se dirigia para o rio e que na margem tinha moldado uma espécie de escada. Mas não havia sinais de rodas. De novo encetei uma investigação “policial”, desta vez mais longa. Num café vi um cartaz que anunciava um passeio TT para o dia 17 de Abril. Mas esse, disseram-me, era só para jeeps e moto 4. Ora, naquele local era impossível passar um veículo de 4 rodas. Reparei que o cartaz anunciava o patrocínio de mais de 40 empresas da região. Não pude deixar de me lembrar que, ainda em 2009, quando o projecto Cabeço Santo apelou à participação de algumas das maiores empresas do Concelho teve como resultado uma resposta nula por parte delas. E quando, em 2006, fez um apelo massivo (centenas de empresas) à massa empresarial concelhia, teve como resultado três respostas. Mas adiante, não eram estes os responsáveis. Mais alguns contactos e acabei finalmente por os descobrir. Era a organização de uma prova de BTT. Admitiram ter cometido um abuso. Mas que ainda iriam pedir para a prova passar no local. Pretendiam além do mais passar também no “trilho” já aberto pelas motas. Insistiram até que autorizasse a passagem. Que não estragariam nada. Que se estragassem, pagavam. Que só os primeiros 25 é que estariam realmente em competição, e que os seguintes só quereriam apreciar a paisagem. Que o sítio era realmente espectacular, e que até já tinham tirado fotos para promover a prova. Que até poderiam reunir um grupo para ajudar nos trabalhos do Cabeço Santo… Estranho, é raro que alguém da comunidade local ou vizinha se pronuncie de forma tão favorável em relação ao trabalho desenvolvido. Mas quero também deixar claro que nenhum destes “incidentes” teve como responsáveis pessoas de Belazaima. Foram pessoas de freguesias vizinhas, e até aceito o facto, patente na forma como se desculparam, de que não terá havido intenção de causar dano. Terá sido apenas falta de consciência, de sensibilidade, de bom senso.
Fui intransigente. Não autorizei a prova de BTT a passar. Se alguém quiser realmente vir e apreciar o espaço, que venha a pé. Nunca impedi ninguém de entrar a pé. Neste sentido, não aplico a moral da galinhita. Porventura não terá sido compreendida a minha decisão. Porventura não será fácil compreender o que ali se passou ao longo de todos estes anos. Em particular a pessoas a quem na infância talvez ninguém tenha contado histórias, que as fizessem aspirar a mais do que loucas correrias pela face da Terra, de que ficam pouco mais do que superficiais impressões sobre tudo o que essa Terra tem para dar. Pessoas a quem a “escola” da TV e de toda a massa de “informação” que chega por todas as vias “ensina” que consumir é que é bom e que nada distingue o banal, o superficial, do sublime, do superior. Por isso aceitei as descuplas e encerrei os casos. Por isso não exponho quem foram de facto os “infractores”, porque isso já não interessa. Mas continua a interessar que tenha acontecido, porque, tal como na história da galinha encarnada e do grão de trigo, há coisas que podem ser aprendidas com o sucedido, ou pelo menos há questões que merecem ser colocadas.
Há quatro anos que o Projecto Cabeço Santo apela à contribuição voluntária. Mas, neste momento, já há mais pessoas a pretender usufruir do trabalho realizado, (ainda que este esteja no seu início, porque também ele é um trabalho para décadas) do que a contribuir para ele. E já há potencialmente mais entidades disponíveis para financiar quem quer usufruir dele (ainda que de forma superficial) do que a contribuir para que ele se realize. E é isso que deve fazer pensar. Nunca pretendi e continuo a não pretender que alguém contribua voluntariamente para este projecto se não lhe sair do coração. E até já aprendi a duras penas que mesmo a quem contribui de forma remunerada não lhe devem os seus objectivos ser indiferentes. Pelo que não quero passar a mensagem: “se querem o “pão”, ajudem a fazê-lo!”. Porque se o fizerem sem amor ele sai “amargo”. A lição da galinhita não é para levar à letra! É mais para fazer pensar. Pensar no facto de as pessoas aspirarem a coisas para a obtenção das quais não estão dispostas a contribuir. Pensar na natureza predatória da sociedade em que vivemos. Pensar…
Paulo Domingues
Olá Paulo,
Muito obrigado por partilhares esta fábula que reflecte sem dúvida a triste realidade da nossa sociedade, que se diz livre e com direitos adquiridos.
Os episódios tristes como os que nos relatas são de facto uma constante para quem pretende realizar um trabalho com intenções acima dos interesses medíocres de um sistema onde os lucros e o divertimento aparecem sempre em primeiro plano.
Mas quando a visão do nosso trabalho parte do coração, e os objectivos forem o de criar bem comum, quer os fracassos quer os sucessos deverão ser transformados em motivação, pois sabemos que apesar da maior parte das pessoas não compreender a dimensão de tal realização, a semente de um futuro mais humanizado está a ser lançada.
Algumas pessoas (ainda que poucas) vão reconhecer e inspirar-se nesse trabalho, e também por si tentar lançar mais sementes.
A nossa esperança é que à medida que a sociedade se degrada essas sementes tenham oportunidade de germinar com força, e que pouco a pouco vão tomando lugar no coração das pessoas que procuram ser felizes num mundo mais justo.
Obrigado pela tua energia e pela tua coragem de levar a cabo um trabalho tão nobre, e por seres uma enorme inspiração.
Um grande abraço,
Ricardo
Faço minhas as palavras do Ricardo e faço votos de que, apesar das vicissitudes com que te vais deparando, continues obstinadamente a lutar contra ventos e marés para tornar o mundo mais bonito. E hás-de voltar a contar comigo (é uma ameaça, eheh), só não sei é quando.
Abraço!
Helena
Subscrevo ao que já foi dito e aproveito para dizer que tenho pena daqueles que nunca participaram em voluntariado deste género pois, apesar de ser cansativo, não há coisa muito melhor que isso.
Pode-se chegar ao fim do dia cansado fisicamente mas o espírito, esse está cheio de força.
Espero que mais pessoas venham a conhecer o prazer que é ser voluntário.
Abraço
Telmo
Apesar das dificuldades que ela retrata, gostei muito de ler esta história, especialmente porque não é contada em jeito de conclusão, mas sim de continuidade. Não posso dizer que não admire as máquinas, mas não compreendo é quem lhes dá um uso tão destrutivo e lhe chama desporto, infelizmente os seus batedores são inúmeros e estão sempre à espreita para descobrir o próximo lugar a danificar, ou até destruir. Nestes grupos acredito que existem pessoas com alguma consciência e espero que estas saibam e consigam refrear as outras.
Eu até sugeria que numa próxima sessão de trabalho se criassem placas a avisar que se trata de propriedade privada, mas ao mesmo tempo temo que elas tenham aquele efeito pernicioso de atrair ainda mais as pessoas mal intencionadas que por agora vêm nos trabalhos realizados uma obra do acaso num mato sem grande valor. Mas é preciso acreditar que aos poucos as mentes possam mudar e que as gerações futuras, por lhe sentirem a falta, olhem para estes espaços como verdadeiros tesouros que são.
Obrigado Paulo por todo o trabalho e empenho!